A liberdade tem asas e rodas
15.300 km de moto e parapente , pela Argentina,
Chile, Uruguai e sul do Brasil
Junte o melhor
veículo para andar em qualquer tipo de terra, com o quase melhor veículo para
deslocar-se no ar. Acrescente um sujeitinho enjoado, que estava a onze anos sem
tirar ferias de verdade, louco pelo vôo livre e com centenas de milhares de kms
de sua vida pilotando uma moto. Como levar uma asa delta é impossível numa
moto, restou a opção daquela mochilinha
que foi devidamente embalada num saco vulcanizado feito com lona de toldo – um
parapente !
A moto era uma
Suzuki DR-650 RE, ano 1995, que ainda é, até hoje, a minha moto. E no dia 02 de
janeiro de 1999, iniciei a viagem que foi a melhor de todas que fiz em meus 28
anos pilotando uma moto.
O destino
inicial era Ushuaia, na perdida Patagônia, a cidade mais austral da América. E
claro, voando de parapente onde fosse possível, durante o trajeto.
Os cinco
primeiros dias de viagem foram somente engolindo kms : 4.500 km até chegar em
Córdoba, na Argentina. Ali, encontrei os primeiros colegas do esporte do voo
livre, em Las Cumbres, próximo a rampa de Cuchi Corral. A rampa de voo livre fica
a apenas oito km de Las Cumbres ( 70 km ao norte de Córdoba ), com 550 m de
desnível. A paisagem é um muito árida e seca, com uma grande planície em volta
dos maciços que nomeiam o lugar ( Las Cumbres ). O vento no dia estava muito
forte, e ouvindo insistentes ponderações dos pilotos locais sobre o perigo do
lugar, esperei uma hora melhor para decolar. Ao invés de diminuir o vento
aumentou muito, e mais nenhum piloto decolou. Frustado, segui no dia seguinte para
Mendoza, já muito próximo à Cordilheira dos Andes.
Em Mendoza,
conheci a chamada pré-cordilheira andina, com maciços de 3 a 4 mil metros de
altura. A rampa de Cerro Arco fica a 1.600 m com um desnível de 600 em relação
à cidade. Fiz amizade com vários voadores do clube de Cerro Arco. Tudo é
radical nesse lugar. A fumaça que eu
pensava ver na desértica e árida planície, na verdade era dust devil com mais de 100 m
de largura, levando a areia a mais de 400 de altura. Os hermanos gritavam, excitados, quando as viam : la térmica, la térmica. Só aí fui compreender que aquilo não era
fumaça, era a pura força da natureza de um lugar incrível. Ë tão radical o lugar que ninguém
tem coragem de decolar antes das 4-5 horas da tarde, mas como o sol se põe só
depois das 9 hs, há tempo suficiente para curtir o voo. Rapidamente alcancei a
altitude de mais de 2.600 m de desnível, com térmicas fortes e que chegavam numa
velocidade vertical ascendente de até 6 m/s – ou seja, mais de 20 km/h subindo
na vertical. Tudo foi registrado com uma filmadora adaptada no capacete. Minha
moto ficou próxima a montanha, e pousei ao lado dela, após cerca de uma hora
voando, feliz por ter feito meu primeiro vôo da viagem.
Voltei ao local
no dia seguinte, para fazer um vôo com térmicas mais fortes ainda, e depois
pousei no autódromo local. Depois do vôo, fui num bar com os buenos hermanos, tendo que brigar com
eles ( e perder ) para ajudar a pagar a conta. Foi difícil deixar Mendoza. Uma
turma de voadores nota dez em companheirismo e amizade, um vôo nota dez em
condições e beleza, e uma cidade que encanta pela simplicidade e limpeza.
Convidaram-me também para jogar uma pelada
(futebol) na segunda à noite, mas para sorte deles ( e minha ) não pude aceitar
– eu sou um perna de pau dos grandes...
Parti para
Santiago, Chile, no dia seguinte. Impossível descrever a passagem pelo Passo de
Los Andes, ao lado do majestoso Aconcágua ( 6.990 m ). Filmei toda a descida,
com a câmera fixada no capacete. Em Santiago, cidade muito grande para meu
gosto, pretendia voar num dos inúmeros vôos que existem lá, além de comprar um
novo escape para minha moto, que estava apresentado furos na lateral.
Fiz um voo
num parque, dentro da cidade, o La
Piramide. As condições são mais radicais ainda que em Mendoza, apesar de ter
apenas 180 m de desnível . Todos decolam somente depois das 7 horas da noite, sendo que o sol se põe quase as 22 hs. Pousar
fora do pouso oficial, um pátio de carga e descarga de caminhões, era mui peligroso. A chance de ser roubado,
perdendo tudo era de 100 %. Acabei pousando num campo de golfe alguns km
depois. Terminei de dobrar o parapente quando a escuridão já deixava muito
preocupado.
Correndo de
cidade grande, deixei Santiago no dia seguinte, sem encontrar um novo escape
para a moto. E olha que fui na “General Osório” de lá, perguntei em dezenas de
lojas, em todas fui mal atendido e ninguém esforçou-se minimamente para
resolver meu problema. E seria muito fácil, bastaria testar alguns modelos de
ponteira de escapamento, fatalmente algum deles serviria-me, mesmo que fosse
com adaptações. Segui para a costa, onde as cidades de Valparaíso, Viña del Mar
lembram os melhores points de praia daqui. Mas como o que eu queria era vôo,
segui mais ao norte, para Mantecillo/Cachagua, onde segundo um site havia vôo
nas falésias da praia. Apesar da página informar um desnível de 200 m, para
minha completa decepção não passava de 80 m, apesar do local ser muito bonito.
As áreas para decolagem era privativas, pagando-se de 2.000 a 4.000 pesos para
decolar ( 5 a 10 dólares ). Como o local tem pouca altura, fiz um voo de poucos
minutos, pois o vento estava muito fraco para permitir ficar mais tempo. Como um
lugar daqueles era mui peligroso para
um homem casado (para solteiros, o contrário ;o), segui no dia seguinte, com
destino ao Lago Lanahue, mais ao sul e longe da costa.
No Lago
Lanahue, tive o primeiro encontro com os famosos lagos chilenos. Belo é uma
palavra curta demais para tamanha extensão de água doce. Cheguei quase
anoitecendo, e passei pelas possíveis decolagens da região, após inúmeras
tentativas de hablar com os nativos
sobre o local exato. De manhã, resolvi dar um passeio pelos morros que circundam
o lago. Esse giro levou mais de 130 km andando pelo rípio, sem encontrar
nenhuma decolagem próxima a estrada.
Voltei então a Elicura, um dos povoados que circundam o lago, onde há uma
decolagem com cerca de 300 m de desnível. Subi a pé, acompanhado por vários
camponeses locais ajudando a carregar o
parapente. Mas o local de decolagem tinha muito mato e o vento fraco e vindo
pelas laterais. Urrei tentando decolar por mais de 40 vezes, liquidando minha
paciência e mais ainda a dos camponeses. Ficaram obviamente muito felizes
quando eu finalmente desisti de voar.
No dia seguinte
segui em direção ao local mais falado do sul do Chile : o lago e vulcão
Vilarrica, com as belas cidades de Pucón e Vilarrica em suas margens. No
caminho, passei direto pelo vôo de Termas de Chíllan, pois minhas vacaciones tem o mesmo problema de
qualquer trabalhador : um dia terminam.
O vulcão
Vilarrica é ainda ativo, podendo-se ver a lava escalado até o topo. No dia
seguinte, fui até a base do vulcão, mas o teleférico já havia encerrado o
expediente. Não quis subir, pois o vento estava muito lateral em relação a
encosta do morro e rumei ao outro lado do vale, num lugar chamado Las Platas.
Cheguei sozinho na base do morro, vendo que a possível decolagem era muito
baixa ( 120 m ). Mesmo assim subi à pé levando o parapente, encantado com a
beleza do local e disposto a voar, mesmo que fosse por pouco tempo. Nunca me
senti tão sozinho quanto neste dia, eu, meu único companheiro, o parapente, aquela imensidão de terra,
água e verde. Ao chegar ao topo, o vento estava muito forte, com rajadas
laterais de mais de 40 km/h. Deitei à sombra, esperando a condição melhorar ou
e o vento ficar mais fraco. Consegui decolar no fim do dia, para fazer uma
merreca (voo curto e sem subir mais alto que a rampa), mas pelo menos não tive
que descer carregando o parapente.
Segui novamente
para a costa no dia seguinte, passando por Niebla e depois rumei para Antillanca, o último vôo antes de cruzar
novamente a cordilheira com destino a Argentina. Descrever a região do Lago
Puyehue, cercado pelas montanhas e vulcões inativos da cordilheira andina, é
tarefa difícil. Após 20 km de rípio, cheguei até o Hotel Antillanca, que na
verdade representa tudo que há no lugar, ao invés de uma cidade. Como só é freqüentado
pelos esquiadores, no inverno, estava com seus 200 quartos vazios. A noite tive
a má notícia da piora do estado de saúde do meu pai (antes de viajar ele havia
vencido a leucemia, mesmo com quase 80 anos nas costas), tomando a decisão de
voltar para casa, ao invés de descer até Ushuaia. Mas antes, na manhã seguinte,
subi com o carro do hotel até à rampa, situada junto à cratera de um vulcão
inativo, com 600 m de desnível. O detalhe é que o vento vinha pelo lado da
cratera, onde não há estrada ou qualquer possibilidade de resgate sem ser pelos
próprios pés. Tentei decolar com o vento lateral, para o vale onde fica o hotel
e o pouso. Mas como não consegui, acabei decolando para o lado da cratera, e
felizmente ganhando altura suficiente para atravessar para o vale do hotel. Foi
o vôo mais lindo de toda a viagem, contemplando os vulcões nevados, os cerros
escarpados e altissímos. Pousei extasiado e feliz, voltando ao hotel e partindo
no mesmo dia para Bariloche. O mais perigoso do voo eram as moscas varejeiras
que tinham no local do pouso. Eram enormes, cerca de 3 ou 4 vezes o tamanho das
nossas, e não picavam – mordiam !!! Fiquei tão desesperado de tantos ataques
que tive que me proteger girando meu cinto e matando literalmente várias no ar.
Por sorte, poucos minutos depois a Kombi do hotel apareceu e me “salvou”
daqueles bichos medonhos...
Bariloche não é
tão famosa sem motivo. O lago Nahuel Hyapi, o vale do Arauco, as torres
escarpadas da cordilheira são impressionantes. Na manhã seguinte, apesar da
necessidade de volver à mi casa, não
resisti e fui até Cerro Otto, onde subi no teleférico até a decolagem, pagando 10
pesos. Os voadores locais decolavam alunos, faziam duplos e aguaram minha boca
falando de El Bolsón, 180 km ao sul, considerado o melhor lugar para o vôo na
Argentina. Decolei fácil para fazer um vôo junto aos condores, com a vista da
cordilheira andina do lado argentino, alguns picos nevados e a bela Bariloche
aos meus pés. Fiz um vôo local, pousando ao lado do teleférico, pois tinha
pressa para continuar a viagem de volta. Este vôo filmei todo com a câmera na
cabeça.
Parti com
velocidade total, agora rumo ao norte e voltando para casa. Foi no final do dia
que aconteceu o único desastre de toda viagem. E creio que inédito na história
do motociclismo – pelo menos, nunca soube de nada parecido.
Eu “voava”
baixo com a moto, a mais de 160 km/h, deitado sobre o tanque para diminuir o
efeito dos fortíssimos ventos laterais. O escape que já estava partido, acabou
de romper e sem que eu percebesse, ou alguém avisasse, incendiou completamente
o alforje do lado direito. Quando parei para fotografar o belo por de sol que
ocorria, vi desesperado que tudo que tinha do lado direito, incluindo minha maquina
fotográfica profissional, alguns dos filmes e fotos que eu tinha feito na
viagem... os presentes que trazia, tinham virado cinzas. Sobrou apenas o que
estava na filmadora e dois filmes de fotos, que felizmente estava em minha
polchete. Na próxima cidade, Neuquen, passei dois dias até consertar o estrago
e parti com destino a Sapiranga, para fazer ali meus últimos vôos da viajem. Uma
coisa que marcou-me foi o mecânico de moto que me atendeu, com sua oficina ao
lado da loja de peças. Foi muito engraçado : cheguei na loja e pedi, com o
“melhor” do meu parco castellano : “Mi nombre é Juan, soy brasileño, estou a
viajar e mi moto partiu lo escape”. O vendedor e dono da loja na mesma hora
puxou-me pelo braço, levou ao mecânico da oficina ao lado : “Olha. Esse hombre
es Juan, ele non habla nada de castellano. Resolva su problema.” Eu que tinha
entendido tudo tentei até protestar, defendendo meu pobre conhecimento do
idioma, mas confesso que meus argumentos foram desprezados ;o)...
Meu pai havia
tido uma melhora, saindo do risco e decidi aproveitar para conhecer o sul do
Brasil. Passei rápido pelo Uruguai, onde tive uma acolhida agradável na pequena
cidade onde pernoitei. À noite, resolvi dar uma volta de moto pela cidade. Foi
muito engraçado : parecia que todo mundo do local somente andava de moto ! Eram
dezenas, ao mesmo tempo, ocupavam praticamente toda a rua. A maioria motos
pequenas, e poucas tinham apenas um passageiro. Algumas levavam a família
inteira (homem, esposa, filho, filho, mais filhos...). E sem exceção, todos sem
capacete !!! Parti no dia seguinte, meus recurso$$$ também não estavam muito
abundantes e era hora de voltar para casa.
Se em Mendoza
sentia-me em casa, em Sapiranga, no RS, também, com a vantagem de hablar a mesma língua. A estrutura do clube de voo
livre local, a hospitalidade dos gaúchos e do uruguaio Eduardo, eram
contrastantes com a solidão de meus vôos no Chile. Fiz dois vôos, um prego
avisado pelos demais voadores, por ter decolado muito cedo e outro, apoiado em lift de um forte vento. Parti no dia
seguinte, com destino a Florianópolis, debaixo de muita chuva. Na ilha
catarinense, vi alguns voadores fazendo lift em falésias na beira da praia. Mas
não tenho coragem de detonar minha vela com a impressionante maresia levada
pelo vento e vôo de lift decidamente não é algo instrutivo ou gratificante para
mim. Rumei para São Paulo e depois para o sul de Minas, em Santa Rita de
Sapucaí, onde encontrei Roberto Hering e Paulo Marcos. A hospitalidade do Paulo
e sua família e o bom humor do Hering amenizaram a falta de vôo, pois foram
dois dias de chuva. Parti para casa, passando perto da rampa de Itamonte e após
trinta dias de estrada e nove vôos, encerrei aquela que foi a melhor viagem e
aventura da minha vida.
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