segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A liberdade tem asas e rodas - sobre minha viagem de moto à Patagonia, em 1999



A liberdade tem asas e rodas


15.300 km de moto e parapente , pela Argentina, Chile, Uruguai e sul do Brasil

Junte o melhor veículo para andar em qualquer tipo de terra, com o quase melhor  veículo para deslocar-se no ar. Acrescente um sujeitinho enjoado, que estava a onze anos sem tirar ferias de verdade, louco pelo vôo livre e com centenas de milhares de kms de sua vida pilotando uma moto. Como levar uma asa delta é impossível numa moto, restou a opção daquela mochilinha que foi devidamente embalada num saco vulcanizado feito com lona de toldo – um parapente !

A moto era uma Suzuki DR-650 RE, ano 1995, que ainda é, até hoje, a minha moto. E no dia 02 de janeiro de 1999, iniciei a viagem que foi a melhor de todas que fiz em meus 28 anos pilotando uma moto.

O destino inicial era Ushuaia, na perdida Patagônia, a cidade mais austral da América. E claro, voando de parapente onde fosse possível, durante o trajeto.

Os cinco primeiros dias de viagem foram somente engolindo kms : 4.500 km até chegar em Córdoba, na Argentina. Ali, encontrei os primeiros colegas do esporte do voo livre, em Las Cumbres, próximo a rampa de Cuchi Corral. A rampa de voo livre fica a apenas oito km de Las Cumbres ( 70 km ao norte de Córdoba ), com 550 m de desnível. A paisagem é um muito árida e seca, com uma grande planície em volta dos maciços que nomeiam o lugar ( Las Cumbres ). O vento no dia estava muito forte, e ouvindo insistentes ponderações dos pilotos locais sobre o perigo do lugar, esperei uma hora melhor para decolar. Ao invés de diminuir o vento aumentou muito, e mais nenhum piloto decolou. Frustado, segui no dia seguinte para Mendoza, já muito próximo à Cordilheira dos Andes.

Em Mendoza, conheci a chamada pré-cordilheira andina, com maciços de 3 a 4 mil metros de altura. A rampa de Cerro Arco fica a 1.600 m com um desnível de 600 em relação à cidade. Fiz amizade com vários voadores do clube de Cerro Arco. Tudo é radical nesse lugar. A fumaça que eu pensava ver na desértica e árida planície, na verdade era dust devil  com mais de 100 m de largura, levando a areia a mais de 400 de altura. Os hermanos gritavam, excitados, quando as viam : la térmica, la térmica. Só aí fui compreender que aquilo não era fumaça, era a pura força da natureza de um lugar  incrível. Ë tão radical o lugar que ninguém tem coragem de decolar antes das 4-5 horas da tarde, mas como o sol se põe só depois das 9 hs, há tempo suficiente para curtir o voo. Rapidamente alcancei a altitude de mais de 2.600 m de desnível, com térmicas fortes e que chegavam numa velocidade vertical ascendente de até 6 m/s – ou seja, mais de 20 km/h subindo na vertical. Tudo foi registrado com uma filmadora adaptada no capacete. Minha moto ficou próxima a montanha, e pousei ao lado dela, após cerca de uma hora voando, feliz por ter feito meu primeiro vôo da viagem.

Voltei ao local no dia seguinte, para fazer um vôo com térmicas mais fortes ainda, e depois pousei no autódromo local. Depois do vôo, fui num bar com os buenos hermanos, tendo que brigar com eles ( e perder ) para ajudar a pagar a conta. Foi difícil deixar Mendoza. Uma turma de voadores nota dez em companheirismo e amizade, um vôo nota dez em condições e beleza, e uma cidade que encanta pela simplicidade e limpeza. Convidaram-me também para jogar uma pelada (futebol) na segunda à noite, mas para sorte deles ( e minha ) não pude aceitar – eu sou um perna de pau dos grandes...

Parti para Santiago, Chile, no dia seguinte. Impossível descrever a passagem pelo Passo de Los Andes, ao lado do majestoso Aconcágua ( 6.990 m ). Filmei toda a descida, com a câmera fixada no capacete. Em Santiago, cidade muito grande para meu gosto, pretendia voar num dos inúmeros vôos que existem lá, além de comprar um novo escape para minha moto, que estava apresentado furos na lateral.

Fiz um voo num  parque, dentro da cidade, o La Piramide. As condições são mais radicais ainda que em Mendoza, apesar de ter apenas 180 m de desnível . Todos decolam somente depois das 7 horas da noite,  sendo que o sol se põe quase as 22 hs. Pousar fora do pouso oficial, um pátio de carga e descarga de caminhões, era mui peligroso. A chance de ser roubado, perdendo tudo era de 100 %. Acabei pousando num campo de golfe alguns km depois. Terminei de dobrar o parapente quando a escuridão já deixava muito preocupado.

Correndo de cidade grande, deixei Santiago no dia seguinte, sem encontrar um novo escape para a moto. E olha que fui na “General Osório” de lá, perguntei em dezenas de lojas, em todas fui mal atendido e ninguém esforçou-se minimamente para resolver meu problema. E seria muito fácil, bastaria testar alguns modelos de ponteira de escapamento, fatalmente algum deles serviria-me, mesmo que fosse com adaptações. Segui para a costa, onde as cidades de Valparaíso, Viña del Mar lembram os melhores points de praia daqui. Mas como o que eu queria era vôo, segui mais ao norte, para Mantecillo/Cachagua, onde segundo um site havia vôo nas falésias da praia. Apesar da página informar um desnível de 200 m, para minha completa decepção não passava de 80 m, apesar do local ser muito bonito. As áreas para decolagem era privativas, pagando-se de 2.000 a 4.000 pesos para decolar ( 5 a 10 dólares ). Como o local tem pouca altura, fiz um voo de poucos minutos, pois o vento estava muito fraco para permitir ficar mais tempo. Como um lugar daqueles era mui peligroso para um homem casado (para solteiros, o contrário ;o), segui no dia seguinte, com destino ao Lago Lanahue, mais ao sul e longe da costa.

No Lago Lanahue, tive o primeiro encontro com os famosos lagos chilenos. Belo é uma palavra curta demais para tamanha extensão de água doce. Cheguei quase anoitecendo, e passei pelas possíveis decolagens da região, após inúmeras tentativas de hablar com os nativos sobre o local exato. De manhã, resolvi dar um passeio pelos morros que circundam o lago. Esse giro levou mais de 130 km andando pelo rípio, sem encontrar nenhuma decolagem próxima a estrada. Voltei então a Elicura, um dos povoados que circundam o lago, onde há uma decolagem com cerca de 300 m de desnível. Subi a pé, acompanhado por vários camponeses  locais ajudando a carregar o parapente. Mas o local de decolagem tinha muito mato e o vento fraco e vindo pelas laterais. Urrei tentando decolar por mais de 40 vezes, liquidando minha paciência e mais ainda a dos camponeses. Ficaram obviamente muito felizes quando eu finalmente desisti de voar.

No dia seguinte segui em direção ao local mais falado do sul do Chile : o lago e vulcão Vilarrica, com as belas cidades de Pucón e Vilarrica em suas margens. No caminho, passei direto pelo vôo de Termas de Chíllan, pois minhas vacaciones tem o mesmo problema de qualquer trabalhador : um dia terminam.
O vulcão Vilarrica é ainda ativo, podendo-se ver a lava escalado até o topo. No dia seguinte, fui até a base do vulcão, mas o teleférico já havia encerrado o expediente. Não quis subir, pois o vento estava muito lateral em relação a encosta do morro e rumei ao outro lado do vale, num lugar chamado Las Platas. Cheguei sozinho na base do morro, vendo que a possível decolagem era muito baixa ( 120 m ). Mesmo assim subi à pé levando o parapente, encantado com a beleza do local e disposto a voar, mesmo que fosse por pouco tempo. Nunca me senti tão sozinho quanto neste dia, eu, meu único companheiro, o parapente, aquela imensidão de terra, água e verde. Ao chegar ao topo, o vento estava muito forte, com rajadas laterais de mais de 40 km/h. Deitei à sombra, esperando a condição melhorar ou e o vento ficar mais fraco. Consegui decolar no fim do dia, para fazer uma merreca (voo curto e sem subir mais alto que a rampa), mas pelo menos não tive que descer carregando o parapente.

Segui novamente para a costa no dia seguinte, passando por Niebla e depois rumei  para Antillanca, o último vôo antes de cruzar novamente a cordilheira com destino a Argentina. Descrever a região do Lago Puyehue, cercado pelas montanhas e vulcões inativos da cordilheira andina, é tarefa difícil. Após 20 km de rípio, cheguei até o Hotel Antillanca, que na verdade representa tudo que há no lugar, ao invés de uma cidade. Como só é freqüentado pelos esquiadores, no inverno, estava com seus 200 quartos vazios. A noite tive a má notícia da piora do estado de saúde do meu pai (antes de viajar ele havia vencido a leucemia, mesmo com quase 80 anos nas costas), tomando a decisão de voltar para casa, ao invés de descer até Ushuaia. Mas antes, na manhã seguinte, subi com o carro do hotel até à rampa, situada junto à cratera de um vulcão inativo, com 600 m de desnível. O detalhe é que o vento vinha pelo lado da cratera, onde não há estrada ou qualquer possibilidade de resgate sem ser pelos próprios pés. Tentei decolar com o vento lateral, para o vale onde fica o hotel e o pouso. Mas como não consegui, acabei decolando para o lado da cratera, e felizmente ganhando altura suficiente para atravessar para o vale do hotel. Foi o vôo mais lindo de toda a viagem, contemplando os vulcões nevados, os cerros escarpados e altissímos. Pousei extasiado e feliz, voltando ao hotel e partindo no mesmo dia para Bariloche. O mais perigoso do voo eram as moscas varejeiras que tinham no local do pouso. Eram enormes, cerca de 3 ou 4 vezes o tamanho das nossas, e não picavam – mordiam !!! Fiquei tão desesperado de tantos ataques que tive que me proteger girando meu cinto e matando literalmente várias no ar. Por sorte, poucos minutos depois a Kombi do hotel apareceu e me “salvou” daqueles bichos medonhos...

Bariloche não é tão famosa sem motivo. O lago Nahuel Hyapi, o vale do Arauco, as torres escarpadas da cordilheira são impressionantes. Na manhã seguinte, apesar da necessidade de volver à mi casa, não resisti e fui até Cerro Otto, onde subi no teleférico até a decolagem, pagando 10 pesos. Os voadores locais decolavam alunos, faziam duplos e aguaram minha boca falando de El Bolsón, 180 km ao sul, considerado o melhor lugar para o vôo na Argentina. Decolei fácil para fazer um vôo junto aos condores, com a vista da cordilheira andina do lado argentino, alguns picos nevados e a bela Bariloche aos meus pés. Fiz um vôo local, pousando ao lado do teleférico, pois tinha pressa para continuar a viagem de volta. Este vôo filmei todo com a câmera na cabeça.

Parti com velocidade total, agora rumo ao norte e voltando para casa. Foi no final do dia que aconteceu o único desastre de toda viagem. E creio que inédito na história do motociclismo – pelo menos, nunca soube de nada parecido.

Eu “voava” baixo com a moto, a mais de 160 km/h, deitado sobre o tanque para diminuir o efeito dos fortíssimos ventos laterais. O escape que já estava partido, acabou de romper e sem que eu percebesse, ou alguém avisasse, incendiou completamente o alforje do lado direito. Quando parei para fotografar o belo por de sol que ocorria, vi desesperado que tudo que tinha do lado direito, incluindo minha maquina fotográfica profissional, alguns dos filmes e fotos que eu tinha feito na viagem... os presentes que trazia, tinham virado cinzas. Sobrou apenas o que estava na filmadora e dois filmes de fotos, que felizmente estava em minha polchete. Na próxima cidade, Neuquen, passei dois dias até consertar o estrago e parti com destino a Sapiranga, para fazer ali meus últimos vôos da viajem. Uma coisa que marcou-me foi o mecânico de moto que me atendeu, com sua oficina ao lado da loja de peças. Foi muito engraçado : cheguei na loja e pedi, com o “melhor” do meu parco castellano : “Mi nombre é Juan, soy brasileño, estou a viajar e mi moto partiu lo escape”. O vendedor e dono da loja na mesma hora puxou-me pelo braço, levou ao mecânico da oficina ao lado : “Olha. Esse hombre es Juan, ele non habla nada de castellano. Resolva su problema.” Eu que tinha entendido tudo tentei até protestar, defendendo meu pobre conhecimento do idioma, mas confesso que meus argumentos foram desprezados ;o)...

Meu pai havia tido uma melhora, saindo do risco e decidi aproveitar para conhecer o sul do Brasil. Passei rápido pelo Uruguai, onde tive uma acolhida agradável na pequena cidade onde pernoitei. À noite, resolvi dar uma volta de moto pela cidade. Foi muito engraçado : parecia que todo mundo do local somente andava de moto ! Eram dezenas, ao mesmo tempo, ocupavam praticamente toda a rua. A maioria motos pequenas, e poucas tinham apenas um passageiro. Algumas levavam a família inteira (homem, esposa, filho, filho, mais filhos...). E sem exceção, todos sem capacete !!! Parti no dia seguinte, meus recurso$$$ também não estavam muito abundantes e era hora de voltar para casa.

Se em Mendoza sentia-me em casa, em Sapiranga, no RS, também, com a vantagem de hablar  a mesma língua. A estrutura do clube de voo livre local, a hospitalidade dos gaúchos e do uruguaio Eduardo, eram contrastantes com a solidão de meus vôos no Chile. Fiz dois vôos, um prego avisado pelos demais voadores, por ter decolado muito cedo e outro, apoiado em lift de um forte vento. Parti no dia seguinte, com destino a Florianópolis, debaixo de muita chuva. Na ilha catarinense, vi alguns voadores fazendo lift em falésias na beira da praia. Mas não tenho coragem de detonar minha vela com a impressionante maresia levada pelo vento e vôo de lift decidamente não é algo instrutivo ou gratificante para mim. Rumei para São Paulo e depois para o sul de Minas, em Santa Rita de Sapucaí, onde encontrei Roberto Hering e Paulo Marcos. A hospitalidade do Paulo e sua família e o bom humor do Hering amenizaram a falta de vôo, pois foram dois dias de chuva. Parti para casa, passando perto da rampa de Itamonte e após trinta dias de estrada e nove vôos, encerrei aquela que foi a melhor viagem e aventura da minha vida.





Dicas para aventuras similares :
·         mande fazer uma boa proteção como a que fiz para o paraca, preservando-o da chuva e de possíveis tombos ;
·         ao parar, cuide primeiro das máquinas. Só depois cuide de si ;
·         use alforjes ou caixas laterais na moto, baixando o centro de massa e facilitando a pilotagem ;
·         uma boa almofada protege aquelas partes e tornam muito mais fácil fazer mais de 1000 km num dia ( teve dia que fiz 1.200 km ) ;
·         um apoio para os pés, encaixado entre o motor e roda dianteira é ótimo para esticá-las e tornar a viagem mais agradável. O paraca serve de um bom encosto para a coluna ;
·         se viajar com mais alguém, que seja um voador. Usem os rádios para comunicarem-se mesmo em trânsito ;
·         pratique ou faça algumas lições de castellano ( não pague micos, como eu ) ;
·         faça um roteiro dos possíveis vôos no caminho e programe-se para em alguns dias viajar e voar no fim do dia;
·         outros sites úteis podem ser encontrados em :  http://www.glasnet.ru/~ghus/links.htm
 



Glossário para entender melhor los hermanos :

Vuelo     : Vôo, é claro
Parapiente : paraca
Ala Delta : Asa delta
Piano     : Merreca ( argh...)
Plegada : Fechada 
Desplegue : Decolagem – desplegar ( decolar )
Aterrisagem : pousar
Cerro     : Montanha
Cerrar o parapente : dobrar o paraca
Rípio : Cascalho grosso ( brita nr. 5 )


 
 

















Amem Ásia - poesia escrita após a tragédia do tsunami na Ásia. Premiada com menção honrosa no concurso de poesias de Colatina-ES



AMÉM  ÁSIA

Uma, duas ou três
Mil, dez mil ou trezentos mil
Olhos, braços, bocas famintas, tantas vidas extintas
Mãos órfãs, corações em vôo solo, que nunca mais terão um colo.

O que importa tamanha quantidade ?
O que importa a qualidade, cor, credo, status ou naturalidade ?
O que importa o “quantos”, mesmo se não for tanto ?!?!
O que importa a tragédia inusitada, diante de todas as outras, todos os dias, repetidas ?

Corpos retorcidos, misturados e abraçados,
Separados na vida, mas entrelaçados na morte,
Corpos escurecidos, agora com a cor de uma só raça, irmanados à força pela terrível onda,
Provas mortas de nossa pequenez, perante esse planeta gigante.

Foice globalizada, que ceifou todos de uma só vez.
Catarse imensurável, inevitável, inacreditável.
Motivando ações e doações, de pequenos e de grandes,
Para lembrar que nenhum oceano é feito sem gotas, nenhuma praia sem grãos.


Impotentes, à dezenas de milhares de quilômetros,
Ou omissos, à poucas esquinas de distância
Somos todos irmãos, filhos do mesmo berço gigante,
Hoje espectadores, amanhã parentes, no futuro vítimas ou vilões.

Vejo, ouço, leio tudo, estarrecido, embrutecido e imobilizado,
Só o pensamento e a lágrima insistente, que teimam em se mostrar presente,
Gotas do meu coração de pai, que percebe que poderia estar lá,
Como filho ou deixando-os sozinhos, como irmão ou como simples amigo.

Amém, Ásia.
Amem todos os pais, filhos e próximos, mesmo que de tão longe.
Amem Maria e João, em português, tailandês ou qualquer "ês",
Que esforços posso fazer daqui, preso na rotina da labuta diária,
Além de pensar : Amém, Ásia. Amem Ásia. Amem alguém.